“Sou uma mulher trans negra e isso é um nível a mais de complexidade”

“Sou uma mulher trans negra e isso é um nível a mais de complexidade”

Com cara de quem entra num túnel do tempo e remexe num velho baú de memórias – assim a cantora e compositora Raquel Virgínia chegou ao tradicional prédio da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP para gravar a entrevista.

“Esse prédio foi um divisor de águas. Não só do ponto de vista performático, mas também de erudição. A USP não foi um lugar que me protegeu. Pelo contrário, às vezes, foi um lugar de violência, também agressão e, sobretudo, por conta das minhas divisões. Porque eu não sou só uma mulher trans. Eu sou uma mulher trans negra e sou isso é um nível a mais de complexidade”, revela a ex-aluna do curso de História da Universidade de São Paulo.

Hoje, empresária, empreendedora, CEO de uma agência de diversidade e duas vezes indicada ao Grammy Latino por sua trajetória com o grupo As Baías e a Cozinha Mineira.

“A transexualidade foi o maior desafio da minha vida. Eu acho que eu nunca vivi nada tão profundo. É uma morte em vida. E, quando você se dá conta, você entrou num abismo que você não sabe onde vai dar”, conta Raquel Virginia que passou pelo processo de se entender como uma mulher trans durante a universidade.

Ela revela que foi uma das fases mais difíceis da sua vida porque foi um processo solitário. Sem apoio dos familiares e sem muitos amigos que compreendessem o seu momento, Virginia se viu vítima de muitas violências e agressões. “Andar na rua era a maior das dificuldades para mim. Do caminho da USP até minha casa, eu era xingada, elogiada… eram várias agressões”.

Remexer nesse baú de memórias é também reverenciar a pessoa que Raquel Virginia se tornou.

“Certamente, se eu não tivesse feito a minha transição aqui dentro (USP), eu acho que eu não teria saído com tantos argumentos sobre a minha transição. Aqui foi um lugar onde eu desenvolvi não só a minha performance de gênero, mas eu desenvolvi também a minha performance de oratória, de como eu ia lidar com isso. Do ponto de vista intelectual mesmo.”

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Cantora e compositora Raquel Virgínia, fundadora da agência Nhaí, no prédio da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. / Gabriel Cyrillo

E foi dentro da maior universidade pública do país que Raquel fez – literalmente – História. Foi durante o período universitário que ela conheceu Assussena e Rafael e juntos, no campus, formaram a banda As Baías e a Cozinha Mineira. Ela conta que descobriu que tinha uma outra pessoa com o mesmo apelido que o dela “Bahia”.

Era a Assussena, que também cantava e compunha. Juntas, se uniram a Rafael e passaram a fazer músicas e se apresentar dentro da universidade. “Foi tudo muito orgânico. A gente gravou um álbum, que acabou ganhando uma dimensão relevante e acabamos seguindo o caminho da música”.

Apesar de fazer música, como ela mesma define: “A USP não era uma festa”.

Isso porque a empresária conta que teve um choque de realidade ao se deparar num curso de História com diversidade racial tão pequena: uma bibliografia, uma maioria de alunos e professores brancos. E, pretos, apenas os trabalhadores terceirizados do prédio – como os faxineiros. Inconformada com essa discrepância racial, fez parte do movimento negro da USP mas teve que lidar também com a falta de dinheiro do movimento.

“Eu lembro da gente não ter grana pra ter um microfone pra falar. Não adianta ter movimento negro sem dinheiro. A gente precisa de dinheiro para estruturar a conversa, para estruturar o debate, para trazer mais pessoas para a conversa, para poder comprar um microfone, para mais pessoas ouvirem.”

E, hoje, Raquel Virgínia é muito ouvida por sua voz potente no empreendedorismo LGBTQIAP+, levando projetos para as empresas com o objetivo de oxigenar as estruturas.

“Hoje, eu sou a pessoa que mais propõe e pede menos. Eu sou uma personagem dessa conversa. Me coloco como interlocutora de ideias para o Brasil possa compreender melhor essa revolução de costumes que a gente está passando e veja que as pessoas trans podem ser protagonistas.”

Protagonista da sua própria história é o que Raquel Virginia sempre foi. Filha de pai negro e mãe branca, criada nas periferias da zona sul de São Paulo, desde muito cedo soube qual era o seu ponto de partida.

“Minha mãe optou pela minha educação em detrimento de outros confortos, como casa. Moramos em casa de parente até a minha adolescência. Essa escolha que ela fez foi fundamental para o que eu sou hoje”, revela a empresária que, diferente de sua família, estudou em escolas particulares.

Nostálgica, mirando o redor do prédio imponente de pé direito alto e com a famosa rampa central, Raquel reverencia sua ancestralidade e aqueles que vieram antes dela. “Eu tive que ter muita resistência mas, ao mesmo tempo, hoje, olhando à distância e vendo onde eu cheguei, eu posso dizer também que foi um dos momentos mais bonitos e libertadores da minha existência.”

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